A consciência em Marx
A questão da consciência é uma das
temáticas mais complexas dentro da teoria marxista.
A ação de
detratores e epígonos
da obra de Marx, (LENIN, 1978; PLEKHANOV, 1990; STALIN, 1982; etc.), imprimiu nesse
conceito um caráter abstrato e metafísico, sendo muitas vezes confundido com teoria do conhecimento.
A imposição de elementos da ideologia
positivista do conhecimento, tal como conhecemos, sujeito, objeto, empírico,
“sujeito cognoscível”, “objeto
cognoscente”, dentre outros termos problemáticos, mostra a necessidade de
expressarmos uma consciência correta da teoria da consciência tal como desenvolvida por Marx.
A questão da consciência aparece em
vários pontos em sua obra, no entanto, os textos intitulados Manuscritos econômicos-filosóficos (2004 [1844]), marcam sua
ruptura com a filosofia hegeliana e, portanto, são expressão de uma consciência teórica livre dos embaraços
abstratos e metafísicos herdados
de Hegel. Embora a questão da consciência já
aparecesse nesses textos, foi somente a partir de A ideologia alemã (2009[1846]), obra conjunta com seu
amigo e colaborador Friedrich Engels, que ele apresenta sua teoria da consciência
derivada de uma concepção materialista da história. Assim, ao analisar o
ser humano a partir de suas
relações sociais, ou seja, o processo de vida real que o indivíduo contrai
para produzir sua vida material, ele também produz
sua forma de ver e entender o mundo em sua volta, ou seja, sua consciência. Dessa forma, buscaremos refletir como os indivíduos, determinados social e
historicamente, desenvolvem sua consciência a
partir de seu processo de vida real.
A relação entre ser e consciência
A tese
apresentada por Marx de que, ”a consciência é nada mais que o ser consciente”
(MARX e ENGELS, 2009, p. 31) nos remete a uma outra questão. O que constitui esse ser consciente? Sabemos que
os seres humanos, diferentemente dos outros
animais, não encontram na natureza os meios acabados para sua sobrevivência. Desse modo, estão em plena desvantagem em relação aos demais animais,
primeiramente pela sua constituição corpórea e sua força física,
ou seja, o ser humano
é um animal frágil perante as
forças naturais. Nesse sentido, ele precisa desenvolver meios de
intervir na natureza,
no sentido de garantir sua própria sobrevivência.
Assim, ao desenvolver formas
inteligentes de intervenção para compensar sua
desvantagem física, isso o coloca de maneira vantajosa frente aos demais
animais, uma vez que nesse processo ele se autocria, humanizando a natureza
e, consequentemente, a si mesmo. O
meio pelo qual ele realiza essa intervenção é o trabalho. Porém, não se trata do trabalho
tal como desenvolvido no modo de produção capitalista. O capital, ao se
apropriar do trabalho, o transformou
em uma atividade alienada e degradante, trazendo sofrimento e alienação para o trabalhador, (MARX,
2004). O trabalho ao qual Marx se
refere como constituinte da natureza humana é um trabalho que edifica o ser humano, uma vez que ele se reconhece em
sua atividade, tendo em vista que ele tem total
domínio sobre o processo produtivo, ao mesmo tempo em que tem acesso ao produto
por ele criado.
Portanto, para Marx e Engels (2009, p.
24) “A premissa de toda história humana é, naturalmente a existência de seres humanos
vivos”. Isso significa
que o ser humano é um ser social e biológico, e que, portanto,
precisa satisfazer um conjunto de necessidades biológicas consideradas fundamentais,
sem as quais, ele não pode subsistir como ser humano. Entretanto, o ato de produzir esses meios necessários à sua sobrevivência constitui-se na verdade,
como sendo a produção de sua própria história,
ou seja, o mundo humano,
e a consciência que se tem dele, assim:
O primeiro ato histórico é, portanto, a produção dos meios para satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, e a verdade é que esse é um ato histórico, uma condição fundamental de toda história, que ainda hoje, tal como há milhares de anos, tem de ser realizado dia a dia, hora a hora, para ao menos manter os homens vivos. (MARX; ENGELS, 2009, p. 40).
Desse modo, podemos
compreender que a natureza do ser humano é constituída social e historicamente e que o trabalho é a categoria central na constituição do seu ser social. Logo sua consciência emana do seu processo de vida real.
No entanto, essa consciência a princípio
é a consciência do próprio meio natural que
o cerca, que constitui a realidade concreta do qual ele faz parte, juntamente
com outros animais.
A consciência,
naturalmente, começa por ser apenas consciência acerca do ambiente sensível mais imediato
e consciência de conexão limitada
com outras pessoas e coisas fora do indivíduo que se
vai tornando consciente de si; é, ao mesmo
tempo consciência da natureza, a qual em princípios se opõem aos homens como poder completamente alienado,
todo-poderoso e inatacável com o qual
os homens se relacionam de um modo puramente animal e pelo qual deixam amedrontar como animais ; é, portanto,
uma consciência puramente animal da natureza (religião
natural) (MARX; ENGELS, 2009, p. 44).
Portanto, isso não significa que em um determinado período
da história humana
a consciência deixou de ser social,
porém significa que o desenvolvimento
da consciência se dá a partir do
desenvolvimento de relações sociais que o indivíduo contrai juntamente com outros indivíduos em determinado
período histórico, marcado por uma determinada
fase social, no sentido de produzir sua vida material.
Assim, Marx faz uma conexão direta entre o processo
de vida real dos indivíduos e as representações que esses indivíduos fazem dessa mesma realidade. Nesse sentido, tais representações
são expressões do condicionamento
feito pela sua posição na divisão
social trabalho, ou seja, a forma como o indivíduo se insere na produção de sua vida material
e pelas estruturas políticas e jurídicas vigentes
em um dado período histórico.
Dessa forma, “a
produção das ideias, das representações, da consciência está em princípio diretamente entrelaçada com atividade material e
o intercâmbio material dos homens,
linguagens da vida real” (MARX; ENGELS, 2009, p.30). Isso significa que todas as criações sociais tais como, política,
religião, filosofia, ciência, estado, etc., ou seja, o conjunto das representações sociais, são produtos
das relações sociais
reais, desenvolvidas por seres humanos
reais de carne e ossos. Essas categorias não possuem nenhuma autonomia fora da realidade
social, são criações humanas e correspondem a
determinado estágio de desenvolvimento da produção e das forças
produtivas,
Nesse sentido, a consciência realmente só pode ser o ser consciente, mesmo que tal consciência seja uma consciência deformada, não deixa de ser expressão real da contradição da qual ela emerge. Isso também demonstra que “ser e consciência” são indivisíveis, toda consciência que o indivíduo tem do mundo e dele mesmo é produto das relações sociais reais, seu processo de vida, sua posição na divisão social do trabalho, sua classe social etc. Verifica-se então a impossibilidade de a consciência ser uma aquisição externa dos indivíduos, ou produto do mundo das idealizações tal como em Hegel, ou de abstrações metafísicas postuladas pelos teóricos do conhecimento (LOCKE,1999; HESSEN, 1980). No entanto, Marx chama a atenção para as formas de consciência e suas possibilidades a partir do desenvolvimento da divisão social do trabalho e da evolução do modo de produção.
Efetivamente, a partir do momento que
surge a divisão entre trabalho manual e trabalho
intelectual, as ideias tendem a ganhar autonomia, como se elas não fossem produtos das mentes de seres humanos
reais. Assim, essa inversão da realidade pode
expressar algo sem realmente ser
expressão do que representa. Surge então a ideologia (MARX; ENGELS, 2009). A ideologia se caracteriza por ser
uma forma de consciência ilusória que
visa inverter a realidade e pode aparecer em forma de filosofia, teologia, ciência, etc. Assim, surge o especialista
no trabalho intelectual, ou seja, o ideólogo,
produtor de ideologia. Mas se a consciência é o ser consciente, ou seja,
é uma unidade indissolúvel, o que
leva determinados seres humanos a expressar uma consciência que não seja expressão
correta da sua realidade. Portanto:
(...) é evidente que, em todos esses casos, essas representações são a expressão consciente – real ou ilusória –
das suas relações e atividades reais, da
sua produção, do seu intercâmbio, da sua organização social e política. A suposição oposta só é possível quando se
pressupõe, além do espírito dos indivíduos
reais e materialmente condicionados, ainda um espírito a parte. Se a expressão consciente das relações reais desses indivíduos é ilusória, eles nas suas representações, colocam a realidade
de cabeça para baixo, e isso, por sua vez, é uma consequência do seu modo de
trabalho material limitado a das relações sociais
limitadas que deles resultam. (MARX;
ENGELS, 2009, p. 30).
Outro elemento de fundamental
importância na teoria marxista, que remete a
questão da consciência, é a questão
das classes sociais.
A sociedade dividida em classes sociais
distintas e marcada pelo antagonismo entre as classes sociais fundamentais (burguesia e
proletariado, no caso do capitalismo), pressupõe a coexistência
de valores, interesses, concepções
antagônicas. Marx e Engels, ao tratar da questão das classes
sociais, deixaram claro que a classe detentora dos meios de produção em um determinado período histórico
também detêm o domínio da produção
da vida espiritual, ou seja, das formas de consciência. Em outros termos equivaleria dizer que “as ideias
dominantes são as ideias da classe dominante” (MARX; ENGELS, 2009, p. 67). Isso significa que se os indivíduos fazem representações equivocadas e ilusórias da sua realidade,
do seu ser no mundo, é porque os mesmos estão
inseridos em relações sociais contraditórias, instauradas pela divisão social
do trabalho, pela divisão da
sociedade em classes, pela instituição da propriedade privada dos meios de produção, o que possibilita a dominação de uma classe por outra.
Desse modo, devido à hegemonia das
ideias da classe dominante e suas formas ilusórias
de consciência, os indivíduos tendem a reproduzir uma consciência falsificada da realidade da qual eles fazem parte.
Isso ocorre porque não é do interesse da classe dominante mostrar a verdade por trás das relações sociais
de produção, que no capitalismo são relações de exploração. No
entanto, os intelectuais representantes da classe dominante, vão “construir sistemas
filosóficos, amplas doutrinas
políticas, concepções científicas e teológicas, em alto grau de complexidade” (VIANA, 2017, p.149),
para omitir os reais interesses da burguesia, ao mesmo tempo em que apresentam
um conjunto de valores como sendo oriundos
da vontade geral.
Assim,
podemos compreender que a ideologia
é uma forma de consciência ilusória. No entanto, não se trata de uma
falsificação qualquer, ou seja, a criação de
ideologias por parte dos ideólogos, não é algo que brota do nada, a
ideologia também possui uma base real, que é a consciência
dos próprios ideólogos. Ou seja,
os ideólogos, ao produzirem ideologias, também partem de seu processo
de vida real, valores, sentimentos, concepções, classe social, etc. Nesse sentido,
o caráter ilusório
da ideologia é
apenas uma de suas características, sendo que ela também é uma forma de consciência.
Porém é uma consciência falsa, que visa inverter a realidade, sustentada por sistemas complexos de pensamentos, produzida por intelectuais especializados no trabalho intelectual.
Nesse sentido, os ideólogos, procuram se
autonomizar da realidade, como se fossem apenas representantes de ideias e concepções teológicas, científicas e filosóficas, que existem independente da vontade dos indivíduos, tal como leis universais, Deus e outras
especulações metafísicas.
Entretanto, retomando a tese inicial de
que a consciência é nada mais que o ser consciente, ou seja, que a consciência é expressão
do processo de vida real do indivíduo, significa
entender que a formação da consciência pessoal é produto das relações reais que esse
indivíduo contrai e reproduz socialmente. No entanto, as formas de consciência social são produtos de relações sociais
mais amplas, que abarcam o conjunto da sociedade. Marx deixou isso bem claro em uma célebre passagem do prefácio da contribuição da crítica da economia política:
O resultado
geral a que cheguei é que uma vez obtido, serviu-me de guia para meus estudos pode ser formulado,
resumidamente assim: na produção social da
própria existência, os homens entram em relações sociais determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações
de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre
a qual se eleva uma superestrutura jurídica, política e à qual correspondem
determinadas formas de consciência social.
O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social,
política e intelectual. Não é consciência dos homens que determina seu ser;
ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. (MARX, 2009, p.
49).
Portanto, aqui Marx afirma que a consciência é um produto
social, que é condicionada pelo modo de produção da vida material.
No entanto, essa mesma passagem, aponta para a possibilidade de
uma consciência correta da realidade. Mas como
chegar a uma consciência correta da realidade, se os sistemas de conhecimentos dominantes na verdade,
não passam de formas ilusórias que visam falsificar a
realidade? A teoria da consciência de Marx nos remete a sua teoria da história,
ou seja, ao materialismo histórico
e ao método dialético. O método dialético, como recurso heurístico, possibilita compreender a
realidade em sua totalidade, ou seja, a síntese de múltiplas determinações históricas e sociais, e com isso chegar uma consciência correta
da realidade (VIANA, 2017).
Entretanto, partir do método dialético,
para entender a realidade histórica e social, significa
partir da perspectiva de uma classe social que, neste caso, é o proletariado, pois a classe
proletária é a única classe
social a quem interessa uma
Referências
FROMM, Erich. O conceito marxista do homem. Rio De Janeiro: Zahar, 1976.
HESSEN, J. Teoria do conhecimento. Coimbra: Armênio Amado,
1980.
KORSCH, Karl. Marxismo e filosofia. Porto: Afrontamento, 1977. KOSIK,
Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
LÊNIN, W. Que fazer? São Paulo: Hucitec, 1978.
LOCKE, John. Ensaios acerca do entendimento humano. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão popular, 2009.
MARX, Karl. Manifesto do partido comunista. São Paulo: Boitempo, 2005.
MARX, Karl. Manuscritos econômicos-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.
MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão popular, 2009.
PLEKNAHOV, Georg. Princípios Fundamentais do Marxismo. São Paulo: Global, 1990.
STÁLIN, Joseph. Materialismo Dialético e Materialismo Histórico. São Paulo: Global,
1982. VIANA, Nildo. Karl Marx: a crítica desapiedada do existente. Curitiba-PR: Prismas, 2017.
VIANA, Nildo. A consciência da história: ensaios sobre o materialismo histórico-dialético.
Rio de Janeiro:
Achiamé, 2007.
* Alessandro Macedo é doutorando em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília-UNB.
